Sobre aquilo a que damos o nome de "Talento"

15-06-2016

A argumentação, a matemática, a pintura, a escrita, o comer a sopa com a colher, são aprendizagens que fazem parte da narrativa da nossa história, e que nos desenvolvem o cérebro e por consequência desenvolvem a pessoa, num cenário de investimento relacional, com um enredo cheio de tentativas, de erros, de aprendizagens da escola, de emoções com os amigos fora da escola, tentando nestes diversos espaços regular e ser auxiliado pelas emoções (função emocional).

Este parece-me ser o maior desafio na área da psicologia. Temos pessoas muito inteligentes, cuja função emocional não ajuda na escolhas de vida, ou impossibilitam de colocar em causa conceitos dados pela cultura (e.g. noção de talento, jeito ou dom em vez do de competência).


Em acompanhamento psicoterapêutico escuto, frequentemente, frases como:

-"É que eu não tenho o dom da palavra, não tenho jeito para argumentar, como os meus colegas de trabalho! É por isso que nunca serei bom advogado!" [Advogado]

-"É que o meu filho é como eu: não tem jeito para a matemática! Mas não faz mal, eu também me safei sem ser boa a matemática." [Mãe]

-"Eu até gosto de pintura e até gostava de ir para o curso de Belas-Artes, mas não tenho talento nenhum paradesenhar!" [Estudante]

Parece-me que cada vez que dizemos implícita ou explicitamente que existe algo, completamente alheio à nossa acção, à nossa vontade, algo visto como inato (e.g., genético) ou como se fosse dado por uma entidade externa (e.g., dom de Deus, influência dos astros, etc) restringimos a nossa acção no mundo. Ou seja, tendemos a ter uma postura de desistência e, consequentemente, não nos desenvolvemos. Pior, deixamos de ser agentes da construção na nossa própria vida.

No primeiro exemplo, este cliente, apesar de ser cumpridor, de se comprometer com os casos de advocacia que aceita, quando se compara com os outros, percebe que AINDA não desenvolveu a competência argumentativa, no que concerne à agilidade dos pensamentos e da palavra.

Nada de espantar, quando em terapia é convidado a parar esse comportamento de introspecção auto-desvalorizante, para tentar perceber, com atenção, quantos anos tem de experiência profissional (e pessoal, em argumentação com familiares, colegas e amigos) e quantos anos têm, os seus colegas, de experiências, vivências e discussão de casos jurídicos, com outras pessoas.

Torna-se claro, para quem conhece e aceita o que é o processo de desenvolvimento humano, que seria de esperar esta diferença nas competências de argumentação, pois as características pessoais não se desenvolvem por se ter determinada idade ou por se ter tirado um curso (daí poderão resultar aprendizagens que não equivalem, necessária ou directamente, ao desenvolvimento pessoal ou cerebral e da personalidade).

O carácter cultural, simplificando, tudo o que encontramos em sociedade, como é o exemplo das profissões e das suas competências-base, não aparece espontaneamente como aparecem as características genéticas. Com a cor e a textura dos nossos cabelos acontece o oposto: aparece geneticamente. Claro que, se quisermos mudar a sua cor e textura, podemos fazê-lo sozinhos, se já tivermos treinado essas competências tantas vezes quanto necessárias à sua aquisição, ou ir a um cabeleireiro, que já aprendeu essa profissão, quando ainda não conseguimos fazer sozinhos.

Porém, todo o esquema de procura de um cabeleireiro, que nos agrade, de direcção e entrada nesse salão, de uso da linguagem para fazer o pedido, de acordo com a imagem mental que forjámos, e toda a espera inerente ao processo de mudar a cor e a textura dos cabelos, tem de ser aprendida, desenvolvida e, por isso, construída, como as neurociências tão bem explicam.

O tecido cerebral que permite estes comportamentos, há que ser construído, adentro do que determinada cultura nos possibilita, e em relações de atenção com aqueles que já dominam a característica, a competência ou os eventos. É por isso que primeiramente algum cuidador nos levou a um cabeleireiro, depois, muito provavelmente, fomos com amigos até que, finalmente, podemos ir sozinhos. A mesma coisa com uma ida a um restaurante, às compras ou até mesmo outro tipo de aquisições...

... Aliás, voltando ao caso do advogado, há que aceitar mais casos jurídicos, trabalhar mais e, no confronto com a vida, com os outros, com os erros, com as dúvidas (que, espera-se que esclareça com colegas veteranos), irá transformar a sua estruturação neurológica, substrato da personalidade, e adquirir muito mais, para além da, já por si complexa, competência argumentativa.

Isto porque o desenvolvimento humano está em aberto, como explicou Vigotsky, autor que associamos à psicologia da aprendizagem e à neuropsicologia. O desenvolvimento não está encerrado em dádivas, mas, por vezes, aparece entravado por crenças que não permitem a procura, a experienciação, a vivência e o desenvolvimento.

Por outro lado, escondem-se nos não-ditos, palavras auto-depreciativas: "Nunca serei bom", o que pode gerar sofrimento, com invasão por pensamentos de tristeza, particularmente se a vida, conforme foi sendo vivida, vivenciada e co-construída, nos exigir essa dada competência. Gera angustia sempre que aquilo que a vida nos pede é percepcionado como inalcançável ou inconstruível.

Há ainda um outro aspecto a salientar: o efeito que esta visão mágica (pois viola as leis psicológicas) do desenvolvimento humano tem sobre as expectativas dos pais e no (des)investimento que eles próprios fazem no temperamento dos filhos. Podem inclusivamente aceitar a falta de competências na área da matemática, de acordo com o segundo exemplo dado acima, enquanto trágica falta de dom, sempre que chamam ao raciocínio matemático, "jeito".

Se o seu filho demora cerca de 11 meses a adquirir a marcha bípede, com muita atenção e incentivo parentais, porque não iria demorar o seu tempo de investimento, com atenção por parte doutros veteranos, em construir o raciocínio matemático?

A argumentação, a matemática, a pintura, a escrita, o comer a sopa com a colher, são aprendizagens que fazem parte da narrativa da nossa história, e que nos desenvolvem o cérebro e por consequência desenvolvem a pessoa, num cenário de investimento relacional, com um enredo cheio de tentativas, de erros, de aprendizagens da escola, de emoções com os amigos fora da escola, tentando nestes diversos espaços regular e ser auxiliado pelas emoções (função emocional).

Este parece-me ser o maior desafio na área da psicologia. Temos pessoas muito inteligentes, cuja função emocional não ajuda na escolhas de vida, ou impossibilitam de colocar em causa conceitos dados pela cultura (e.g. noção de talento, jeito ou dom em vez do de competência).

E agora pense... Em que áreas já deixou de investir por achar que não tem talento? Pintura, como o exemplo acima, da estudante? De uma futura relação, por achar que não tem "sorte" no amor?

Para terminar, reforço que as palavras "Sorte" ou "Talento", na minha concepção, deixam ao acaso o próprio destino, não ajudando a responsabilizar-nos. Com o seu uso e a crença inerente, podemos tender a não agir em conformidade com os desafios do dia-a-dia, desistindo de tentar. Desistir, desinvestir, não agir são o contrário do desenvolvimento cerebral, do seu treino para ganho de novas competências. Por isso, se gostaria de saber, por exemplo, cantar, não deixe de investir em aulas de canto porque acha que não tem "talento". Apenas não tem horas de treino corrigido, com alguém que é mestre no assunto.


Dr.ª Rute Teixeira, Neuropsicóloga e Psicóloga Clínica e da Saúde                                                           Agendamento de consultas:  96 336 74 37
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